domingo, 9 de outubro de 2011

Narciso, Às Cinco


Já era alta madrugada e os carros eram raros na Rua Augusto Travestine, os quais passavam em intervalos de meia hora. Uma neblina pairava naquela rua, os prédios eram grandes, cada um com uma árvore na frente. As luzes dos apartamentos já estavam apagadas e o silêncio só não era completo devido ao som de uma fábrica ao longe. 
Em meio a este cenário frio e distante, que parecia ter sido copiado pelo escritor de algum livro de Dostoievski, é que surge um rapaz a passos rápidos, porém com movimentos desconfiados, como alguém que tem certeza, mas ninguém pode saber. Um sujeito alto com um sobretudo preto, fumando um cigarro de forma ansiosa, ele olha para todos os lados e parece caminhar cada vez mais rápido, as batidas do sapato na calçada atrapalham o silêncio quase completo. Ele para em frente ao prédio 22, que ficava na quadra 4, a quatro quadras do parque Laborion. Vai ao meio da rua e olha as janelas, como se quisesse ver se tinha alguma luz em algum dos apartamentos, corre até a porta de entrada e toca o interfone, volta ao meio da rua correndo e olha a espera que uma luz se acendesse.
Nada, tocou novamente e voltou ao meio da rua, desta vez pode ver que uma luz aparecia e a cortina balançava, mas não compreendeu por que não foi atendido ao interfone. Após 10 minutos, nos quais ele tentou fazer uma ligação, sem resultados, a porta se abriu e ele que estava concentrado em sua tentativa, virou com um olhar de espanto e logo depois um semblante de concentração para a figura que aparecia a porta. Era um sujeito que aparentava uns 30 a 33 anos, estava vestido todo de cinza,  calça e blusa, segurava em suas mãos uma vela e uma caixa de fósforos, tinha um semblante muito distante,
de alguém que não estava lá. Olhou para o rapaz que se encontrava sentado na escada e que agora lhe mirava com total atenção e lhe disse: “o interfone esta quebrado faz quase uma semana”. O rapaz que agora já se levantara e caminhava de forma misteriosa perguntou-lhe “é, achei estranho Cristian, pensei que não estivesse ou que não queria visitas”, “como não iria querer se te liguei fazem 4 semanas dizendo que precisava conversar com alguém, mas você parece que se distanciou do mundo em que vivíamos. Saiu e não me deixou nenhuma pista”. O rapaz, com semblante de atenção, que já não era mais tão profunda e que agora parecia ser seguida de uma pena respondeu-lhe “Na ultima conversa você ultrapassou o próprio niilismo, nossas conversas estavam me fazendo muito mal. Você precisa entender que os problemas reais, devem, para o nosso próprio bem ultrapassar os problemas abstratos”. Cristian, como quem ofende procurando o afago respondeu “Então não tem mais sentido, nossos mundos são outros e qualquer conversa não durara mais que irritantes minutos. John, você era o único que me entendia”, e John protestou: ”Cristian, você esta precisando de ajuda, me convide para entrar. Foi a Emile que me mandou vir até aqui, ela disse que você não fala mais com ela”. E Cristian retrucou de forma soberana: ”Não deixarei alguém que se tornou tão normal entrar no meu ninho, você se tornou estranho para mim. E Emile para mim era um objeto que não serve mais”. John, afetado pelas palavras de Cristian disse: ”Cara você esta magro, não foi mais as aulas, não tem mais ido dar aulas. Peço, me convide para entrar, aqui esta frio” “Não” ”Por Deus Cristian, você nem se interessa em saber por que estou aqui?, porque estou diferente?. Minha vida não esta fácil, estou com sérios problemas, me impressiona como você se acha muito importante ao ponto de não ter o mínimo de empatia”. Cristian com voz alterada respondeu-lhe ”Não pronuncie esta palavra “Deus”, se você ousa entrar, e empatia é algo que já discutimos”. John de forma irritada retrucou “Bom, você quem sabe, vamos entrar ou não?, se não, eu irei voltar, pois a July já achou um absurdo eu sair a uma hora dessas para falar com alguém que apesar de eu dizer que é um gênio, ela sabe que é um “louco””. Dez minutos de silencio se passaram, nos quais John se encolhia de frio, por fim Cristian disse “Entre, mas não quero tocar em três assuntos, Porque eu matei a Laury, Porque Deixei a Emile e minha condição física” e John “Como você queira Cristian, afinal este é seu mundo né?, você dita as regras”
Em um mesmo clima de aproximação, desconfiança e magoa, John e Cristian subiram as escadas. John ia de cabeça baixa, pensando em como poderia tirar o amigo daquele mundo em que ele também viveu. Cristian, em silencio, no começo comentou que não usava mais o elevador, por uma questão muito simples, era perda de tempo, ele não conseguia ficar parado, e que o amigo obrigatoriamente teria que acompanha-lo até o sétimo andar. John perguntou o porquê da vela e ele disse em forma irônica “Fique tranquilo, não virei Cristão como você, ainda estou salvo de pecado, apenas não pago mais a conta” e John rompendo com a densidade riu e disse “Você continua muito astuto Cristian” e John ainda de forma irônica disse “E você muito feliz, o porquê é que não consigo ver”, recobrindo novamente de densidade aquele clima que parecia ser uma das regras daquela noite.
John chegou ao sétimo andar quase aos empurrões, para completar a situação foi mais uma vez presenteado com o olhar repressivo e a ironia de Cristian “É John, você sabe né?! Aquele cowboy da Marlboro era apenas uma jogada de marketing. Os pulmões gostam mesmo é de ar, talvez agora você consiga ter esta grandiosa compreensão, mas acho que dentro da ignorância dos seus vícios, você vai escolher nicotina” e John “obrigado pela sua bondade meu amigo” e Cristian enquanto abria a porta “de nada, mas até segunda ordem, retire a palavra amigo”.
         O apartamento de Cristian era algo metodicamente organizado, na porta deveriam tirar os sapatos e colocar uma pantufa e os sapatos deveriam ficar ao lado de fora, segundo ele era isto um símbolo de que as coisas da rua ficam na rua. Após este ato, que Cristian gostava de dar um ar ritualístico, ele acendeu a vela que estava em sua mão e voltou para fechar a porta. John estava ali, parado, apenas com a luz que entrava pela janela, e que já lhe mostrava que algo estava erado, era possível ver que a sala estava sem os moveis de antes, e tinha muita coisa jogada pelo chão. Cristian foi acendendo algumas velas pela casa, quatro ao total, uma em cima de uma pilha de livros que estava ao centro da sala, outra em cima da geladeira, outra em uma pequena mesa ao canto direito, entre a cozinha e a sala e outra no canto esquerdo em cima de uma caixa ao lado da porta do quarto. Agora, já com uma luz suficiente, era possível ver todo o ambiente, John pode ver que o amigo realmente estava conturbado, todos os objetos, livros, aparelhos eletrônicos, mantimentos estavam no chão, mas ainda assim de forma organizada.
John, com cara de incompreensão perguntou “cadê os moveis?” e Cristian “estão morando no quarto de hospedes” “por quê?” perguntou John, “porque eles não têm utilidade, o que tem utilidade é o que eles levam dentro, eles são descartáveis, assim como a Emile, eles servem ao senhor das aparências e da falsidade” e John “Me disse que não queria que falássemos da Emile”, “você não, eu posso” e John, voltando-se para a cozinha disse “e como tem feito com a geladeira se você esta sem luz?” e ele respondeu “tenho comido as coisas quentes” “e as carnes” perguntou John, com um sorriso de arrogância Cristian respondeu “nossa cara, você realmente mudou esta parecendo minha vó perguntando “e a carninha netinho, como tem feito””. “Talvez você tenha razão, eu tenho crescido e você continua ai” respondeu John, “Parabéns senhor John, o senhor transcendido” Retrucou Cristian, “não transcendi nada, só que estava ficando louco com as suas reflexões, no ultimo estudo que fizemos para o seminário, você me fez pensar em suicídio, e cara, você não é abalado por estas coisas, você age fabricando as bombas e jogando-as na minha cabeça, mas você mesmo, não esta nisso, está ai, seguro nas suas loucuras, sei que o que a Emile me disse não tinha sentido, você nunca se mataria, por isso não vim quando ela disse a primeira vez, você não acredita nas coisas que você escreve e nem nas coisas que fala, você sabe que são apenas pontos de vista, mas isso nos abala, abala aos seus alunos, abala principalmente a mim”. Cristian acendendo o fogão disse “Você é fraco e demasiadamente influenciável, assim como este bando de cérebros atrofiados com livros no braço que a única coisa que fazem é memorizar, pois não sabem refletir, que chamamos equivocadamente de estudantes”, “Apesar de você achar isso deles, eles se preocupam com você”, “Nossa John, você virou um cristão de merda mesmo, mas para que você não me crucifique, irei me defender. Um dos motivos pelo qual eu estou afastado de tudo é justamente para não continuar a influenciar a você e a todos os demais”. John com um sorriso irônico disse “Mentiroso! eu te conheço, você fez isso porque sabia que isso influenciaria ainda mais, você é o Charles Manson da nossa geração ”, “pense o que quiser, mas pense melhor... Você já se colocou em meu lugar, você nunca teve um aluno seu que se matou por sua teoria, eu já tive dois.... Então não me venha dizer que eu quero continuar aparecendo” Retrucou Cristian.
Passaram-se alguns minutos em profundo silêncio, nos quais John se manteve sentado no chão olhando fixamente para a vela e Cristian terminava de passar um café. Após servir o café em duas xicaras brancas de tamanho médio, Cristian entregou uma para John e com a outra em sua mão sentou-se ao seu lado, perguntando de forma irônica “ainda toma café sem açúcar ou a cristandade te tirou até isso?” e John respondeu “não entendo a relação, mas ainda tomo café sem açúcar e me impressiona como o meu cristianismo influencia mais a você do que a mim mesmo” e Cristian de forma rápida disse “o que me afeta não é que você acredite em um livro que foi escrito não sei quantos anos atrás em uma língua totalmente diferente e que hoje traduzem ejacular por gonorreia, o que me afeta é você ter se entregue ao dualismo a terrível ideia de Bem e Mal, foi este o fruto que você esta comendo e esta te tirando do mundo em que vivíamos” e John “Olha aqui Cristian, o mundo em que vivíamos era o labirinto das teorias e o único lugar em que estávamos chegando era na beira de uma varanda”, “É, eu sei, sempre soube, esta historia de Cristo, igreja, foi a tua grande fuga e também a July né, sabe quando o cara se apaixona ele aceita até a mentira, uma delas é você acreditar que ela te ama, a outra é isso”, e John virando-se para Cristian, de forma severa “cara, pare de me fazer me sentir assim, pare, você quer matar mais alguém?, pode ser tudo mentira, mas isso esta me tirando desta beirada, da qual você esta bem longe”, e Cristian de forma severa retruca “Não estou bem longe companheiro, apenas sei que o abismo é uma ilusão, se entregar ao nada não é virar o nada, mas sim compreender tudo.... Mas eu tenho meu jeito, se tem algo que faço de errado é fazer os outros viverem o que não acreditam, então quando chegam ao abismo do conhecimento eles se jogam no abismo de uma janela ”, John quase em forma de suplica diz “se você concorda que não te acompanhamos então me deixe seguir o que quero em paz, você tem o poder de nos moldar , e por piedade você deveria parar com isso”, Cristian com ar de indiferença retruca “não pedi para você vir aqui”, “pediu sim Cristian, inconscientemente você pediu, tuas atitudes companheiro, seus artigos são bombas que você solta sem nenhum cuidado e agora você fez isso melhor que ninguém e depois sumiu, só eu e Emile sabemos seu endereço aqui de Portland”, e após uma pausa de reflexão prosseguiu “seus alunos te admiram, quando você fala os olhos deles brilham, pois você é muito profundo, mas quando eles pegam o que você disse e voltam para eles mesmos eles enlouquecem, sentem um vazio, eu sei, porque apesar de não ser teu aluno, é isso que sinto. Então esperamos que você preencha os buracos que você fez, mas você constrói outros e depois some”. Cristian abalado pelas afirmações de John diz, “O que devo fazer, parar de escrever?, parar de dar aulas? Dar uma de Zaratustra?, me diz cristão”. e John de forma exausta e desanimada “não sei, não sei, acho que você deveria separar a sua vida das coisas que você acredita”, “desculpa, mas isso no dicionário se chama Hipocrisia” retrucou Cristian, “pois é Cristian, e você acha que as pessoas vão sobreviver sem hipocrisia?”.
Após um intervalo reflexivo John perguntou “cara posso fumar aqui? Estou me sentindo muito tenso” e Cristian “pode, não vou impedir seu suicídio prolongado”, “Cristian, já falei, pare de falar a palavra suicídio, você só diminui a profundidade da vida toda vez que repete esta palavra”, “é pode ser, talvez ela seja mais profunda que a queda né?!”, “vou fumar meu cigarro”, John se levanta e se dirige a janela, Cristian avisa “não olhe muito para o abismo”, e John retruca “estou bem em terra firme”.
Passados vinte minutos, nos quais Cristian lava a louça e John fuma seu cigarro, reencontram-se ao meio da sala, John pergunta “Qual livro esta lendo?”, “não estou lendo nada, não tenho mais interesse, estou preferindo remoer as coisas que já observei e você?”, “Caim, José Saramago”, “Já li, mas não lembro quase nada, faz muito tempo”. “Pois é, estou gostando.”.
         Os dois se sentam novamente, Cristian pergunta com uma risada “Acho que você conseguiu reconquistar minha amizade, me diz o que tem passado de tão difícil?”, “July esta pensando em ir para a Europa terminar o Doutorado, passa horas com o seu orientador, e ele é definitivamente mais inteligente que eu”, com uma risada Cristian diz “isto é obvio né”, “nossa que amigo que você é” Retruca John, “isso é obvio, um cara que sofre por uma questão tão instintiva e perde o controle não merece muita credibilidade”, “nossa” Retruca John exalando todo o seu ar. “Cara, acorda, esse é o mundo para o qual você entrou, problemas banais que podem provocar risadas ou lagrimas banais, nesse mundo você é um títere”. “Mas este é o único mundo que existe para mim, este outro que eu vivia era o seu mundo, não o meu Cristian” Retrucou John. Olhando bem para ele, Cristian afirma “sempre te dei espaço nele, você poderia pensar o que quisesse”, “não quero voltar a este assunto Cristian, e também tenho outros problemas que quero apenas que você escute, se realmente me considera seu amigo”, “todos os ouvidos atentos” disse Cristian de forma irônica. “Tenho passado, nas ultimas três semanas, por coisas que nunca imaginaria passar em minha vida. Conheci uma garota e nos envolvemos, conheci-a em uma apresentação de Balé da July, ela tem 15 anos, mas é linda, linda, intensamente delicada e pura, me apaixonei, acho isso ridículo, tenho 30 anos, não sou pedófilo, nada, mas cara, ela me olhou e falou comigo de uma forma que eu simplesmente me apaixonei. Ela é uma aluna da July e começou a ir muitas vezes lá em casa ter aulas particulares. Por favor, apesar do seu niilismo, eu não sei como você vai entender isso, mas um dia ela foi em um horário em que a July não estava, eu estava estudando, ela tinha ido pegar uma mochila que tinha esquecido. Em fim, ela me agarrou, juro não fiz nada ela me agarrou, eu nunca teria feito nada, mas ela fez e eu não resisti, meu amigo ela praticamente abusou de mim e eu não tive força para dizer não”. Após uma pausa, continuou John “ela fez o que quis comigo e por fim começou a chorar, dizendo por que eu tinha permitido. Eu não sabia o que fazer, quando fui enxugar as lagrimas dela, ela gritou dizendo “seu pedófilo, se afaste de mim”. Agora pense na minha situação, ela contou aos pais dela e a única que não sabe é a July e eles estão pensando em me processar. Outra questão é que estou com um processo institucional, porque apoiei o protesto que gerou o quebra-quebra na universidade. Poço perder a docência e mais que perder, isso vai ficar marcado em minha carreira, não sei cara, estou perdido, cheguei ao nada, estou sem saída, meus problemas agora são reais, muito reais” e Cristian após pensar “É cara, você pode largar a docência e escrever um livro erótico”, “filha da mãe insensível” disse John rindo, “Meu amigo, este é o jogo, você esperava o que, se quer viver bem no mundo real tem que ter muito cuidado, as pedras que você chuta hoje vão fazer você tropeçar amanhã, aí neste mundo você é apenas mais um”, disse Cristian e continuou “Eu escolhi virar um Eremita moderno, quando liguei para você a três semanas era para lhe falar desta minha decisão, talvez se você tivesse me dado atenção”. “Não Cristian, este é o seu mundo, que você criou, não é o meu, eu terei que enfrentar meus problemas” retrucou John. “mas para que John, aonde você acha que vai chegar?”. “em lugar nenhum, mas apesar de tudo, me sinto mais seguro em meus problemas do que em seu mundo” respondeu. E Cristian em tom de conselho disse-lhe “Como humano eu lhe digo faça o que tem que ser feito, porque eu irei fazer o que tenho que fazer”.
Após uma pausa em que os dois mergulharam em profunda reflexão, Cristian disse “Matei Laury porque depois que Bery morreu ela só chorava, não comia direito, a existência tinha perdido o sentido para ela”, outra pausa e John fala “Já é quase 4 da manhã, posso dormir aqui?”, “pode sim, irei arrumar as coisas aqui na sala para você”, John permaneceu ali sentado, folheando uma revista na qual estava marcado o último artigo de Cristian com o seguinte titulo “Deus não é um Pop-star abstrato”. Após tudo já estar arrumado os dois se desculparam, como de costume, mas tinha um clima muito estranho no ar, nada estava bem, nada. Deram boa noite e Cristian por ultimo disse “não esqueça de orar ao seu pop-star abstrato”.
Nada mais se ouviu até as 5 da manhã em que aquele silêncio torturante foi rompido por barulhos de vidro um grito agonizante, seguidos por um forte barulho que vinha da rua. Ele acordou assustado, correu, abriu a porta e encontrou em meio aos objetos um pequeno bilhete em que poderia ler, “Vai Narciso sem água, se entrega ao seu abismo, se joga, vai atrás do fundo, vai atrás do reflexo de si mesmo”.

Autoria: Filipe Zander Silva 
Revisão: Eduardo Stein

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